Reforma financeira e direitos subjetivos: cenário de incertezas

Os direitos subjetivos hoje existem em estado de fluxo, pois seu conteúdo (de modo correlacionado com a efetiva fruição) depende de múltiplos fatores, muitos dos quais são internacionais (ver exemplos aqui e aqui). Dentre esses fatores é chave o modo como se organizam os mercados financeiros e as operações financeiras transfronteiriças.

A importância disso para a fruição de direitos subjetivos em praticamente todo o mundo é tão crucial que o Fundo Monetário Internacional (FMI) recentemente fez um alerta sobre a possibilidade de “explosão de protestos sociais” decorrente da crise econômica (ver aqui). Obviamente, O  FMI tem consciência dessa relação entre o papel das finanças internacionais e a fruição de direitos, pelo menos desde que o então economista do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, descreveu, em 2001 (incidentalmente, o ano em que foi agraciado com o Prêmio Nobel de Economia), os “quatro passos” para a danação das economias que seguissem o receituário de reformas pregadas pela instituição (ver aqui).

A relação entre “boas” finanças no plano internacional e a fruição de direitos no plano nacional é tão verdadeira que os protestos vieram: ver vídeo aqui, que compara o caso da Argentina em 2001 com o da Grécia em 2010. Pode-se dizer que os protestos refletem a circunstância de que, perante as pressões financeiras, vários direitos subjetivos, ostentados na textualidade das constituições, tendem, na prática, a se tornar letra morta.

Há autores (p. ex.: Thilo Marauhn, “Introduction: the regulatory dilemma in international financial institutions”. In: The Regulation of International Financial Markets) para quem a combinação de regulação nacional (pública) com a influência quase regulatória derivada de atores privados, tais como as Agências de Classificação de Risco (ACRs) (ver discussões aqui e aqui; ver também estudo recente sobre as operações duvidosas das ACRs aqui; ver exemplos de outros atores privados relevantes aqui) impõe dificuldade insuperável para que as finanças desempenhem, de maneira inequívoca, um papel preponderantemente positivo no mundo.

E, de fato, o atual debate sobre a reforma da regulação financeira no mundo compõe um cenário de incertezas para o futuro previsível. Primeiramente, a opção pela regulação global foi descartada (ver aqui). Ao mesmo tempo, a regulação nacional adotada há poucos meses (em julho de 2010) pelos Estados Unidos (EUA) na forma da Lei Dodd-Frank, dado o alcance das operações de mercado das instituições financeiras estadunidenses, passou a assumir um papel de “modelo” informal a ser seguido por outros países. O ponto é que a adoção de regulações mais severas, ou muito divergentes, em diferentes jurisdições pode implicar em desvantagens estratégicas (menos crédito) para as economias com uma disciplina jurídica mais exigente do setor financeiro.

Por outro lado, ainda quanto a esta lei, o “x” do problema é como ela será aplicada na prática, mesmo na jurisdição dos EUA. Já existem análises (ver exemplo aqui) segundo as quais os lobistas de instituições financeiras cavaram “buracos” (loopholes) na lei, que, por isso, em muitos aspectos, se tornará ineficaz. Além disso, os grandes financistas, ao que consta, usam do seu poder de mercado para influenciar reguladores. Nesse sentido, mesmo que em partes do mundo os reguladores queiram “apertar os parafusos” – ver noticia nesse sentido sobre a União Européia aqui – certos limites práticos relacionados à distribuição de vantagens estratégicas acabam se erguendo por obra e graça de grandes instituições financeiras (que, ironicamente, foram resgatadas por Estados mediante pacotes de ajuda bilionários). Assim, por exemplo, segundo fonte já citada, o Goldman Sachs tem usado esse especial poder de dissuasão perante autoridades da União Européia.

Quanto a esforços de coordenação internacional, dois lances mais visíveis aconteceram recentemente. O primeiro foi o anúncio do acordo internacional (de soft law) conhecido como “Basiléia III”. Este acordo se propõe a melhorar o seu antecessor (Basiléia II), e indicar regras que tornem mais improvável que instituições financeiras arrisquem muito em suas aventuras especulativas. Mas, a par de ser apenas soft law, o Basiléia III conflita com a Lei Dodd-Frank, conforme apontado aqui, trazendo mais oportunidades de que suas estipulações sejam dribladas na prática.

O outro lance no âmbito das movimentações para a cooperação internacional foi o anúncio de ontem, feito pelo FMI, de que quer se tornar o guardião da estabilidade sistêmica global. Com isso, o fundo pretende exercer uma supervisão das finanças em países sistemicamente importantes — uma proposta que de certo modo ecoa idéias  divulgadas desde 2006, quando, em reação a críticas, o fundo anunciou sua “Estratégia de Médio Prazo” (ver aqui). A supervisão, pelas regras atuais, não obriga os países membros a seguir recomendações do fundo; e a proposta, cuja preparação foi anunciada, mudaria isto. O mesmo anúncio do FMI frisa que haverá mudanças na estrutura de exercício da autoridade formal (poder de voto, quotas, etc.) no interior da instituição. Mas, nessa esfera, segundo apontam as melhores análises (ver uma delas aqui), parece não haver espaço para reformas profundas, que atribuam uma participação mais efetiva a países de fora do G7 no estabelecimento de políticas. Daí haver, nos dias de hoje, uma tensão inevitável entre o FMI e o G20 financeiro.

O FMI, ao que tudo indica, quer atrair para si o papel de grande árbitro político das dificuldades de coordenação internacional no campo financeiro – um papel que migrou dele para o G7 após 1971, quando o presidente Richard Nixon “melou” o regime de cooperação cambial presidido pelo fundo. Após a crise de 2008, finalmente, houve uma movimentação política no sentido de ampliar o fórum de concertação monetária do G7 para o G20, mas é preciso ver ainda como ficará a efetiva distribuição de autoridade entre os diversos atores. Infelizmente, por ora, esta ainda não é uma questão jurídica (poderia ser), mas sim apenas política. E parece que o mercado financeiro tem a expectativa de que o FMI será fortalecido, como indica a análise de técnicos do Morgan Stanley aqui.

Correndo meio por fora dessas negociações, encontra-se um novo tipo de ator, com potencial para mudar o rumo de muitos acontecimentos. Trata-se dos Fundos de Riqueza Soberana (FRSs), que, por sua potencial influência, têm sido monitorados com atenção, inclusive pelo próprio FMI. Na verdade, ninguém sabe ainda qual será o papel desses fundos no futuro. E há vozes tentando dizer como eles devem se comportar ou até o que eles devem fazer (ver aqui e aqui).

Finalmente, mesmo sob o protesto de grupos da sociedade civil (ver exemplo aqui), têm ficado mais ou menos “esquecidos” — et pour cause! — os paraísos fiscais, em vários casos também chamados de “jurisdições de sigilo” (secrecy jurisdictions), que permitem muitas movimentações financeiras permanecerem a salvo da incidência de normas regulatórias de interesse público.

Diante disso, aos juristas preocupados em contribuir para a justiça econômica e/ou para o desenvolvimento equitativo, pouco adianta invocar as categorias de análise antigas (típicas, por exemplo, do direito internacional “clássico” – ver discussão aqui), pois os fatos do mundo não se ajustam àquelas “formas” jurídicas envelhecidas. Novas categorias de análise e novos estilos de expertise precisam ser desenvolvidos. Para isto procura contribuir a Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE).

8 Responses to Reforma financeira e direitos subjetivos: cenário de incertezas

  1. […] exemplo ilustra, assim como outros (ver aqui), o fato de que a fruição de direitos subjetivos no mundo contemporâneo tende a ser instável, […]

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  2. […] importa o fato de que este valor estratégico tem repercussões sobre a fruição de direitos (ver aqui e aqui) e o desenvolvimento. Não obstante, na ausência da cooperação internacional na área da […]

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  3. […] isto repercute sobre a possibilidade de fruição de direitos fundamentais e direitos humanos (ver aqui e aqui), o que torna a matéria de interesse de juristas, sobretudo os que se preocupam em […]

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  4. […] das finanças públicas, depende a fruição de muitos direitos fundamentais (ver aqui, aqui e aqui). E foi ressaltado, também, que, após a crise de 2007-2008, sendo rejeitada a solução da […]

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  5. […] 2010, tem sido inúmeros os protestos (ver exemplos aqui e aqui) contra a política de “ajuste econômico” adotada por diversos países após a crise […]

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  6. […] sido indicado neste blog (ver exemplos aqui e aqui) que os pacotes de austeridade adotados por governos em vários países, em resposta à […]

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  7. […] a fruição de direitos fundamentais e direito humanos em várias partes do globo (ver exemplos aqui, aqui e aqui). Esta crise, segundo o Ministro da Fazenda do Brasil, Guido Mantega, começa a […]

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  8. […] por diversos economistas destacados, entre os quais Dani Rodrik (ver aqui), Joseph Stiglitz (ver aqui), Ha-Joon Chang (ver […]

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