A PEC 241 e os juristas

Há dois dias (em 10-out. 2016) ocorreu a votação em primeiro turno da PEC 241/16. Consta que algumas autoridades ligadas ao mundo jurídico – magistrados e procuradores – tenham-se manifestado contrariamente à aprovação da medida.  E o fizeram, aparentemente, com base em argumentos frágeis (ver aquiaqui), imediatamente classificados como sinais de uma atitude “corporativista” que estaria a defender privilégios de setores do serviço público.

estatua-justica2-stfPorém, sabe-se que a validade prática de qualquer inovação legislativa (incluindo emendas ao texto de constituições) nas democracias contemporâneas atravessa ciclos de debate e contestação, às vezes sinuosos ao ponto de extrapolarem o âmbito estrito do processo legislativo, até que se estabilize alguma institucionalização da nova norma. No caso da PEC 241/16, o ciclo de contestação gerou desde logo as manifestações de autoridades da esfera jurídica, já mencionadas, além de iniciativas de mobilização da sociedade civil, hoje equipada com as redes sociais (ver exemplo aqui).

Portanto, mesmo sendo aprovada no legislativo definitivamente, a PEC 241/2016 estará ainda sujeita a percorrer os caminhos de seu ciclo de legitimação e institucionalização. Tais caminhos, possivelmente, envolverão novas manifestações de autoridades da área jurídica, talvez até mesmo em processos judiciais.

Sobre isto vale a pena observar que o argumento produzido pelas autoridades da área jurídica até agora – já criticados por serem de caráter corporativista – são em si mesmos muito pouco convincentes. Mas há, evidentemente, outros argumentos jurídicos a serem considerados.  Um dos mais importantes é o fato de que, na sociedade de mercado, a liberdade se institucionaliza de maneira complexa, por meio de proteções asseguradas ao chamado direito de propriedade e à estruturação de contratos, sendo, contudo, a formação e duração das características estruturais desses elementos sujeitas a inúmeros condicionantes advindos da política econômica.

Após a II Guerra Mundial tornou-se comum que tais condicionantes sejam, no mais das vezes, intelectualmente organizados sob a forma de artefatos descritos como “dispositivos de agregação de interesses” (DAIs), com abrangência macrossocial. A subdisciplina da economia conhecida como macroeconomia tornou-se prestigiada desde a década de 1950 em boa parte por ter-se transformado em um celeiro desses artefatos, a começar pelo chamado “modelo IS-LM” ao qual, com o passar do tempo, acrescentaram-se vários outros, até o surgimento dos recentes Modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral (DSGE, na conhecida sigla em inglês) (ver aquiaqui).

A PEC 241/16 usa crucialmente, como recurso político-administrativo, um desses artefatos, um modelo de política macroeconômica.  Na prática, tais modelos tornam-se expedientes políticos na medida em que são percebidos como eficazes pelos que deles se beneficiam, e não porque incorporem, comprovadamente, ideais de justiça que a sociedade busca alcançar. Por isso, frequentemente, medidas de política econômica afetam adversamente a fruição de direitos fundamentais, tornando a sociedade mais injusta, ainda que alguns setores se tornem circunstancialmente mais ricos. Por isso, também, a petição online referida está certa ao alertar os cidadãos que convoca: “O que está em jogo são os seus direitos!”

Com a emenda em trâmite no Congresso, o governo espertamente procura, por assim dizer, constitucionalizar um modelo de política macroeconômica que nem de longe é consensual entre economistas (caso contrário, não veríamos manifestações como esta aqui). E procura fazê-lo sem ter tido o respaldo das eleições. Além disso, o prazo estabelecido para a vigência do modelo é longo, o que é em si mesmo abusivamente afrontoso à democracia.

Do ponto de vista jurídico, restaria ainda saber o quanto o artefato a que se vincula a PEC 241/16 afeta a possibilidade de os cidadãos brasileiros, em sua grande maioria, fruir da liberdade a que aspiram. Mas isto o discurso dos juristas de plantão não abordará, a não ser que tal discurso passe a adotar bases de análise e argumentação novas, capazes de explicitar o modo como as polīticas econômicas promovem ou obstaculizam, em diferentes casos, a fruição de direitos considerados fundamentais. A fruição desses direitos não apenas corresponde a um desiderato moral, mas é também imprescindível para que a sociedade como um todo se torne produtiva e globalmente competitiva. 

Ao permanecer refém de um positivismo ultraformalista e envelhecido, com raízes no século 19 (ver aqui), o  direito brasileiro tem sido, com facilidade, usado sistematicamente como instrumento do oportunismo político. E isso tem contribuído para manter esse direito como fator antitético ao desenvolvimento e à possibilidade de aliar o dinamismo econômico à justiça social. Tal situação, evidentemente, precisa mudar.

As discussões do GDES e sua produção avançam em direção à adoção de novos referenciais de análise jurídica, capazes de contribuir para a reforma das políticas públicas e para a promoção da efetiva justiça no Brasil do século 21.

7 Responses to A PEC 241 e os juristas

  1. […] membro do GDES e professor da Universidade de Goiás, oferece abaixo uma contribuição sobre os debates jurídicos e interdisciplinares acerca da PEC 241/2016 – e mecanismos obscuros por ela […]

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  2. marcusfaro says:

    Sobre o predominante uso de modelos matematizados na economia, há muitas críticas. Um exemplo aqui:

    [Tradução livre da fonte abaixo (pp. 771-772)]: “A central problem of economics is its subconscious self-understanding as mathematical-exact natural science. For the economy does not follow any natural laws, but is subject to social change, culture and humanized institutions. (…) The extreme focus on the formal-mathematical approach and model thinking is therefore to be questioned critically. – – – The use of models and mathematics, however, is not a problem in principle, but above all the maintenance of simple equilibrium models. For the world is a chaotic system and economic systems are therefore never in equilibrium, they are complex dynamic systems with path dependencies, imbalances, and systemic uncertainty. The one-sided focus of economics on stochastic equilibrium models and econometric methods cannot meet this complexity.”

    FONTE:
    DOI: 10.1007/s10273-016-2047-4

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  3. […] para diminuir ou anular a efetividade de direitos fundamentais da maioria do povo brasileiro (ver aqui e aqui). Qualquer semelhança com o movimento #FeesMustFall em curso na África do Sul (ver aqui e […]

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  4. […] lado jurídico, a PEC é condenável porque torna praticamente inevitável que seja drasticamente minada ou destruída a efetividade de […]

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  5. […] que certamente necessitariam relacionar mais explicitamente o direito e a economia política (ver aqui e […]

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  6. […] avidamente obter a aprovação da chamada PEC 55 (antes numerada como PEC 241). Essa PEC pretende constitucionalizar um modelo de política econômica que ostenta, como componente principal, o que os autores da medida […]

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