Pesquisa empírica no campo jurídico

Já foi apontado neste blog que a pesquisa jurídica no Brasil sofre de limitações muito debilitantes (ver aqui, aqui e aqui). Um dos aspectos dessa limitação é o fechamento dos currículos de ensino do direito a interações pedagógicas com outras disciplinas, tais como a Economia, a Contabilidade e as Ciências Sociais de um modo geral. A situação mais comum é que o ensino do direito abra o currículo para meras introduções à Sociologia, Economia e outras Ciências Sociais. Os estudantes mal chegam a tomar contato com essas disciplinas — o que é uma pena.

Outra limitação do estudo acadêmico do direito é a sua dificuldade em estabelecer parâmetros que permitam a incorporação de pesquisa empírica.

Obviamente, muito exagero pode ser feito no afã de incorporar dados empíricos aos estudos no campo jurídico — conforme aponta este artigo do PrawfsBlawg, que se refere à linha de trabalho divulgada pelo blog acadêmico chamado Empirical Legal Studies (ELS). A produção de dados empíricos que merece ser trazida para o campo jurídico necessita estar bem dimensionada, ser relevante para o estudo planejado, oferecer respostas necessárias a questões empíricas, ou apoios para demonstrações de argumentos empíricos, sempre relacionados a questões de direito concretas.

Na ausência da abertura para a pesquisa empírica, o estudo do direito tende a permanecer, no Brasil, enclausurado em formalismos intelectual e praticamente estéreis, mas talvez politicamente úteis para finalidades estranhas à ética da pesquisa acadêmica e nefastas para a evolução das instituições no Brasil.

No que concerne a necessidade de incorporação de pesquisa empírica ao campo jurídico no Brasil, vale a pena reproduzir (além de trabalho já citado) as considerações do professor Roberto Kant de Lima, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em seu prefácio ao excelente livro (fruto de pesquisa acadêmica rigorosa) de Bárbara G. Lupetti Baptista, que tem o título: Os Rituais Judiciários e o Princípio da Oralidade (Porto Alegre, Fabris Ed., 2008).

No prefácio à obra, o prof. Kant de Lima — que tem dupla formação, em Direito e em Antropologia — observa com propriedade que “a constituição de uma reflexão propriamente científica sobre o campo do Direito, no Brasil” enfrenta várias dificuldades. E prossegue:

“Entre elas, a mais significativa é a dificuldade epistemológica que o campo jurídico brasileiro, diferentemente de outros campos jurídicos ocidentais, tem de assimilar parâmetros acadêmicos fundamentados em pesquisa empírica, ou melhor, de considerar como saber qualificado aqueles cujos dados têm essa origem.”

Conforme destacado pelo professor Kant de Lima no mesmo prefácio, a dificuldade mencionada prende-se a um certo iter de evolução política da sociedade brasileira, que deixou de assimilar amplamente os fundamentos de movimentos políticos (as revoluções liberais, ou revolução liberal burguesa) que instituíram os direitos civis e a igualdade de todos perante a lei. É um fato que, na prática, nem todos os indivíduos (ou grupos) gozam de direitos igualmente no Brasil. E isto se reflete de vários modos no ensino e na prática do direito no país.

Por isso, explicita Kant de Lima,

“abre-se, muitas vezes, para surpresa dos chamados operadores (…), um abismo desmesurado e, aparentemente, ilógico, entre aquilo que está escrito e aquilo que é interpretado, entre o que se faz e o que se diz, e entre o que se espera do sistema judicial de administração de conflitos e aquilo que ele proporciona.”

Este resultado prático só é possivel porque, conforme indica o autor,

“nosso ensino jurídico, com raríssimas e honrosas exceções, optou por manualizar integralmente seus mecanismos de reprodução, mantendo-se afastado das formas de produção científica do conhecimento, que orientam todo o sistema de reprodução acadêmica e universitária contemporâneos.”

Ora, a manualização, como se sabe, acaba por contaminar também parte do que é feito em programas de pós-graduação nas faculdades de direito brasileiras. Quem não se deparou ainda com trabalhos que procuram apoio simultâneo em combinações estranhas de autores com propósitos e argumentos tão díspares quanto Luhmann, Bobbio, Boaventura de Souza Santos, Habermas, Rawls ou Canotilho?

Nesse sentido, vale a pena ler o que escreveu o prof. Kant de Lima sobre os efeitos da manualização no ensino do direito no Brasil:

“Assim, não é incomum que textos elaborados em contextos completamente distintos, em países e momentos históricos que se opõem e mesmo se contradizem no campo do direito, sejam enfileirados nos textos dos manuais como se estivessem a expressar os mesmos conceitos, borrando suas origens e dissonâncias num mecanismo medieval e escolástico de oposição de teses contraditórias.”

As conseqüências disso não são difíceis de serem previstas. Como diz o citado professor:

“Não é difícil imaginar os efeitos que este sistema de reprodução do conhecimento, apoiado em uma dogmática jurídica sustentada por doutrinas (…) impróprias para a produção do conhecimento, tem no campo jurídico que o comporta. Teorias há muito ultrapassadas reforçam preconceitos vulgares, representações do senso comum e conhecimentos de divulgação científica contemporâneos que, caso a caso, servem para sustentar as interpretações as mais contraditórias da letra da lei, ou de sua literalidade.”

A importância dos estudos empíricos para o campo do direito é amplamente reconhecida fora do Brasil. Ver, por exemplo, além dos já apontados, os links indicados aqui e aqui. As abordagens que podem ser geradas a partir da admissão da pesquisa empírica como componente da pesquisa jurídica são inúmeras, e certamente há desvios ou exageros possíveis, em relação  aos quais é preciso ter clareza. Mas simplesmente ignorar o quanto a pesquisa empírica pode contribuir para a evolução do direito no Brasil não ajudará a ninguém — a não ser aos que desejam manter o campo jurídico no país mais como um obstáculo do que como um meio efetivo de promoção da justiça.

3 Responses to Pesquisa empírica no campo jurídico

  1. […] sobre o antigo formalismo – o do século 19. Isto tem gerado diagnósticos, como os já citados aqui, e o de Marcos Nobre (agradecimentos a Daniel Colombo pela indicação), para quem as […]

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  2. […] empírica em direito empresarial Já foi enfatizado neste blog (ver aqui e aqui) que o ensino do direito no Brasil deveria superar seu apego predominante a formalismos da […]

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  3. A expressão “manualismo” é bastante preconceituosa. Manuais de direito são comuns em qualquer país e têm um propósito inteligibilizador para matérias complexas. Luhmann, Bobbio, Habermas etc. são filósofos, politólogos ou sociólogos. Eles não ensinam direito, a não ser que se queira usar Habermas num habeas corpus ou numa ação de despejo. Não entendo o porquê de se querer substituir a Dogmática jurídica que, apesar do nome infeliz, que remete à expressão dogmatismo, é uma ciência própria e que tem de ser ensinada.
    O Direito não fica menor se não se usar uma plêiade de intelectuais e acadêmicos e triste o ensino jurídico que estará apto a falar de “desconstrução”, “fenomenologia”, “círculo hermenêutico”, mas nada sabe sobre a Teoria dos Negócios Jurídicos.

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