Nota sobre Direitos Previdenciários

May 12, 2023

No dia 12/05/2023, ocorreu a primeira reunião do GDES no mês de maio 2023. A atividade foi uma inovação quanto ao formato: consistiu em uma apresentação de um tema simultaneamente jurídico e econômico, seguida de debate com o(a)s participantes, sendo tudo realizado em modalidade remota e com transmissão pública e ao vivo pela internet via plataforma Youtube. A gravação da reunião está disponível aqui.

Henrique Dantas (advogado e estudante do Mestrado em Direito na FD-UnB) expôs alguns desafios intelectuais e práticos por ele recentemente enfrentados, como advogado, no julgamento, perante o STF, de processo sobre o tema de direito previdenciário e constitucional conhecido como “Revisão da Vida Toda”. A exposição do Henrique foi seguida de um debate aberto inclusive ao público participante por via remota. Para a atividade foi indicada também a leitura de Castro (2021) a fim de que o grupo procurasse discutir possíveis relações entre conceitos desenvolvidos na perspectiva da AJPE e o tema abordado por Henrique em sua exposição.

A seguir estão algumas sugestões sobre como perceber algumas dessas relações, embora certamente outras possam também ser feitas.

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NOTA sobre aspectos econômicos e políticos dos direitos previdenciários em suas relações com a AJPE (por: Marcus Faro de Castro) – Esta Nota integra o material de apoio à reunião do GDES ocorrida em 12/05/2023.

Na perspectiva da AJPE, há uma distinção importante entre “direitos de produção” (referentes a ações na esfera da produção e troca comercial) e “direitos de consumo” (relacionados a ações que expendem – e assim destroem pacificamente – o que é produzido e trocado comercialmente). Inicialmente, na sociedade moderna, também caracterizável como “sociedade de mercado”, as instituições, incluindo as jurídicas, davam ênfase a que cada indivíduo autônoma e contratualmente obtivesse recursos financeiros para o seu próprio sustento durante toda a vida. Contudo, na ausência de proteções tais como o “salário-mínimo” e várias outras, as características institucionais do mercado de trabalho, na prática, tornavam impossível a realização desse desiderato.

Múltiplos protestos dos que eram prejudicados (o/as trabalhore/as), juntamente com a ampliação do sufrágio, provocaram mudanças. Assim, desde finais do século XIX, governos iniciaram a criar instituições que asseguravam direitos de consumo aos que fossem, ou se tornassem, inaptos a engajar nas esferas econômicas de produção e troca. Este seria o caso típico de idosos e outras pessoas incapacitadas para o trabalho. A partir daí, sendo estabelecidos os sistemas de seguridade ou previdência social, que foram generalizados sobretudo a partir do período do segundo pós-guerra, tornou-se aceito que os “benefícios” sociais ou previdenciários devem criar condições institucionais claras e estáveis para que as atividades de consumo dos titulares desse direito ocorressem de modo satisfatório, isto é, sem percalços ou limitações injustificadas.

Portanto, foi em decorrência de embates políticos, acima referidos, que o “direito ao benefício previdenciário”, um “direito de consumo”, tornou-se formalmente incorporado às constituições dos Estados e por isso passou a ser considerado um “direito constitucional” ou “direito fundamental”, merecedor de proteção superior à que é dada a outros direitos (não fundamentais).

Ocorre que, a partir da década de 1970, o rendimento do capital – oriundo do lucro dos investimentos, ou seja, da propriedade comercial – em vários países do ocidente começou a declinar em decorrência do acirramento da competição comercial internacional (especialmente a competição dos chamados “Tigres Asiáticos”). Quanto a isso vale a pena lembrar que, entre os motivos para a decretação da inconversibilidade do dólar em ouro por Richard Nixon em 1971, estava o primeiro déficit da balança comercial dos EUA desde 1893 [1].  

Em tal situação, diminuir a renda relativa do trabalho, canalizando a diferença para a remuneração do capital, tornou-se uma das reformas capazes de ampliar em alguma medida, ou prolongar, a competitividade internacional dos investimentos privados no mundo ocidental. A onda de reformas do sistema de previdência, defendidas pelo Banco Mundial desde os anos 1980 [2], representa um movimento no sentido de realizar mudanças nas regras institucionais que estruturavam o direito fundamental ao benefício previdenciário.  Dificuldades na manutenção do sistema que conjuga a tributação especial e o financiamento intergeracional do consumo decorreu em parte também de mudanças demográficas, em especial o relativo envelhecimento da população de diversos países.

Nos termos da AJPE, o benefício previdenciário deve assegurar, ao titular do direito, as condições econômicas para que o consumo civil seja realizado sem que esse titular esteja engajado em atividades da esfera produtiva e comercial. Em outras palavras, para usar dois termos empregados em Castro (2021) [3], o direito ao benefício previdenciário deve prover ao titular o Lastro Monetário (LMo) adequado para assegurar a esse titular a aquisição de bens e serviços constitutivos da Estrutura de Utilidades (EUts) da vida civil. Hoje no Brasil, na prática, há inúmeras “EUts da vida civil”, segmentadas por classe social e, portanto, por faixa de renda média auferida ao longo da vida produtiva de cada titular. Em muitas cidades, bairros nobres ou condomínios “de alto padrão”, que contrastam com periferias urbanas pobres ou favelas entremeadas no espaço urbano, são uma amostra visível disso.

No Brasil, assim como em vários outros países, governos têm procurado reformar os sistemas de previdência de várias maneiras, quase sempre para diminuir os benefícios econômicos dos titulares de direitos ao benefício previdenciário. Em alguns casos (vide o recente exemplo da França), parâmetros como a “idade mínima” são modificados para cima. Além disso, muito frequentemente, o direito ao benefício deixa de ser assegurado pelas regras de finanças públicas (tributação especial e financiamento público intergeracional) e passa a ser uma expectativa subsidiária à performance do mercado de capitais (bolsa de valores). Esta é a chave para a chamada privatização dos sistemas previdenciários. Trata-se da transformação de “i” em “ii”: (i) os sistemas de “Benefício Definido” (BD), sob os quais o LMo para o consumo civil é assegurado por força das regras que estruturam as finanças do Estado,  são substituídos por (ii) sistemas de “Contribuição Definida” (CD), em que o rendimento do capital no sistema financeiro tem preferência sobre os benefícios previdenciários. Ou seja, no sistema CD, parte da renda do trabalho é aplicada no mercado financeiro, agregando-se ao capital, e os rendimentos das aplicações, correspondentes a uma diminuta parcela secundária da renda do capital em geral, formam, para  cada titular, o seu “benefício previdenciário”. Neste último caso, como se percebe, trata-se de um benefício incerto, dada a flutuação dos preços no mercado financeiro, podendo ocorrer ganhos ou perdas para os titulares dos direitos previdenciários. Nesse tipo de reforma, não há o cuidado de juristas com as condições e regras institucionais das quais resultam a adequada formação do LMo para cada titular, posto em correlação com a programação de aquisições de bens e serviços das EUts constitutivas do consumo civil.

O “case” exposto pelo Henrique Dantas, se refere a um sistema “BD”.  Na ação judicial comentada, o INSS/Fazenda Nacional defendia a pretensão de que o cálculo do valor monetário do benefício previdenciário considerasse um lapso temporal restrito (apenas a partir de 07/1994), mesmo que as contribuições mensais do titular (via tributação especial) houvessem ocorrido desde data anterior. A União, portanto, queria que esse marco temporal fosse um parâmetro do cálculo do benefício. O STF, contudo, entendeu que o lapso temporal deve ser a totalidade do tempo de contribuição. No caso judicial referido, a definição do lapso temporal considerado no cálculo (que foi confusamente apresentado pelo INSS/Fazenda Nacional) faz parte da parametrização do direito ao benefício previdenciário.

As observações acima mostram que os termos LMo, EUt e parametrização, abordados em Castro (2021), são conceitos úteis para a análise jurídica da política econômica. Como dito no texto citado, o LMo e a EUt formam em conjunto a “base material da efetividade dos direitos subjetivos”. Pode-se ainda considerar que os direitos de consumo da vida civil abrangem os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESCs), como dito em vários textos de autores que trabalham na perspectiva da AJPE. Com base nisso, o(a)s juristas poderiam ainda considerar que a existência de inúmeras EUts da vida civil, segmentadas por classe social, reflete a persistência de obliteração da efetividade de vários direitos fundamentais para diferentes classes sociais. Em tese, portanto, os conceitos mencionados ajudam o(a)s juristas a pensar macroeconomicamente sobre meios de correção da ausência de efetividade dos direitos fundamentais em geral ao longo do tempo. Lembremos que, segundo o comentário de Mônica de Bolle (discutido por nosso grupo na reunião de 28/04/2023), os prazos macroeconômicos não são os prazos dos tesoureiros de bancos.

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[1] – Gilpin, Robert, e Jean M. Gilpin. The political economy of international relations. Princeton, N.J: Princeton University Press, 1987, p. 140.

[2] – Ver Holzmann, R., Richard Paul Hintz, e Mark Dorfman. “Pension systems and reform conceptual framework”. SP Discussion Paper no. 0824. World Bank, Social Protection & Labor Sector, junho de 2008. http://siteresources.worldbank.org/SOCIALPROTECTION/Resources/SP-Discussion-papers/Pensions-DP/0824.pdf.

[3] – Castro, Marcus Faro de. “A Dimensão Econômica da Efetividade dos Direitos Fundamentais.” Revista Semestral de Direito Econômico, Porto Alegre, v. 01, n. 02 jul./dez. (2021). https://doi.org/10.51696/resede.e01201. ISSN: 2764-3999