Transformações da advocacia

Já foi mencionado neste blog que, na economia de mercado, pode-se perceber uma relação entre advocacia e desenvolvimento (ver aqui). Além disso, vale a pena registrar que a advocacia vem passando por transformações importantes, que talvez tenham sido apenas um pouco desaceleradas com a crise financeira de 2008. Elas certamente tenderão a retomar impulso à medida que o crescimento das economias do Norte global ganhe fôlego. Entre essas transformações estão as reformas de marcos legais da profissão, que aproximam o exercício da advocacia de uma atividade puramente econômica, ampliando a tendência de que os direitos subjetivos sejam tratados como mercadoria.

Nesse sentido, países como a Inglaterra e a Austrália se empenharam nos anos recentes em mudar a disciplina legal da advocacia para que as bancas de advogados possam passar a existir como empreendimentos plenamente comerciais (sociedades anônimas de capital aberto) – sem preocupação primordial de pôr a profissão a serviço de valores morais ou ideais de justiça, tais como direitos inalienáveis ou direitos humanos. A lei inglesa chamada Legal Services Act, de 2007, permite que, a partir de 2011, escritórios de advocacia adotem “formatos comerciais alternativos” (alternative business structures). Nesses formatos institucionais alternativos, as firmas de advocacia poderão (a depender de discussões em curso) ser adquiridas e economicamente controladas por quaisquer pessoas, mesmo não sendo advogados, que nelas invistam seu capital. Ver uma análise aqui, com o subtítulo: “O fim do mundo como o conhecemos”.

A tendência de transformar “causas” (ou direitos subjetivos sub judice) em interesses puramente comerciais já ocorre em muitos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, não é incomum que as “causas” judiciais se tornem plenamente investimentos comerciais (ver aqui). Assim, fundos de investimentos fazem aportes de capital em bancas de advogados para obter parte dos rendimentos daí resultantes (ver também aqui). [Atualização 16-nov.-2010: Ver mais informações aqui.]

E, na Austrália, uma banca de advogados, a Slater & Gordon, tornou-se o primeiro escritório de advocacia a transformar-se, de fato e de direito, em uma sociedade de capital aberto, com ações transacionadas na Bolsa de Valores daquele país, a Australian Securities Exchange – ASX (ver aqui). Segundo informações, com a abertura de seu capital, a Slater & Gordon aumentou seu faturamento em 21% em 2009-2010.

Embora veham causando alguma polêmica (ver exemplo aqui), estas transformações da advocacia têm o potencial de levar a profissão a se dividir em um setor extensamente “massificado”, voltado para o varejo (pode-se pensar em quiosques de escritórios de advocacia em estabelecimentos como Lojas Americanas, Tesco, Walmart, grandes supermercados e shopping centers etc.); e outro setor dedicado ao “atacado”. Questões de “integração vertical” podem então vir a tornar-se relevantes no âmbito da política concorrencial aplicada aos serviços advocatícios. Faz sentido, também, pensar no desenvolvimento, ao lado dos dois setores já mencionados, de uma “advocacia estrutural”, dedicada a questões relativas à estrutura organizacional da sociedade. Para estas, o pensamento jurídico contemporâneo, em sua vertente hegemônica, já tem uma metodologia pronta: a “ponderação de valores”, que lava as mãos diante do que, para muitos indivíduos, pode não ser negociável. Esta metodologia pode ser convenientemente complementada com visões da sociedade que privilegiem a metáfora do “sistema” impessoal (ver, por exemplo, G. Teubner, “The Anomymous Matrix: Human Rights Violations by ‘Private’ Transnational Actors”, Modern Law Review, v. 69, n. 3, 2006).

De um ponto de vista mais pragmático e em uma abordagem futurista, o autor Richard Susskind tem se dedicado a estudar  vários dos temas relativos às transformações da advocacia. Seu website está aqui, e seu último livro está aqui. Resumos de suas teses foram publicados no jornal The Times de Londres (ver aqui). Sua discussão dá uma grande ênfase ao papel da tecnologia. Mas é óbvio que há outras dimensões, certamente mais importantes do problema como um todo.

Diante das mudanças em curso, não espanta, por exemplo, que firmas de advocacia estejam esquentando os motores mediante novas práticas, tais como a oferta de “vales-divórcio” como promoção de Natal. Aparentemente, já findou a era romântica do advogado como “profissional liberal”, paladino da verdade e das causas justas. Estaremos assistindo aos pródromos da advocacia pós-moderna? Daí sairão vencedores os que fizerem os cálculos certos para investir nos hedges ou coberturas efetivamente mais estratégicas, diante de contextos complexos. Os menos capitalizados e/ou com menos acesso ao crédito financeiro e a informações inteligentes serão os mais tripudiados. O mundo não será necessariamente mais justo. Nem as economias, que hoje são emergentes, serão necessariamente mais ricas.

3 Responses to Transformações da advocacia

  1. […] entre advocacia e desenvolvimento e as transformações da profissão, já apontadas (ver aqui e aqui), ganham especial relevância as decisões e rumos dos acontecimentos nas ligações […]

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  2. […] Sobre isto tem circulado a informação de que, em 70% de todas as transações em bolsa, os operadores mantêm  direito sobre os ativos transacionados por apenas onze segundos (ver aqui e também aqui). Depois desse prazo, desfazem-se do que adquiriram (ou em relação ao que informaram intenção de adquirir) e passam para outra operação, de onze segundos. Isto ocorrem em 70% dos casos. São os Investidores de Alta Frequência (HFTs, na sigla em inglês). E o fato de que os programas de computador, que conduzem automaticamente as operações, são propriedade privada simplesmente torna o problema mais difícil de ser resolvido. Este é um cenário, aliás, que casa muito bem com o das transformações da advocacia. […]

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  3. […] relationship to how the economy is itself transformed was already addressed by this blog (see here – in Portuguese, but with links to materials in English). Among the new practices […]

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