Bolha imobiliária: sua face jurídica revela prováveis ilícitos

Tem sido divulgada a ocorrência do chamado estouro da bolha especulativa que embalava o mercado imobiliário norte-americano há algum tempo. As irradiações financeiras desse evento nos mercados de capital e câmbio têm sido objeto de atenção de vários analistas. O foco aí tem recaído sobre a preocupação com os investidores, a ameaçada robustez dos mercados financeiros e com os maiores ou menores infortúnios decorrentes da reacomodação de interesses em resposta à crise.

Porém, um aspecto da questão que tem recebido menos atenção está no que pode ser chamada de “face jurídica” desse ciclo especulativo. É a dimensão jurídica da bolha que articula a economia real com a economia monetária, neste caso provavelmente envolvendo afrontas a direitos e ilícitos contratuais.

Sabe-se que o mercado imobiliário hoje se expande globalmente, com os fundos de investimento imobiliário (FII), ou real estate investment trusts (REITs). Na formação da recente bolha imobiliária, a ligação entre as dimensões real e monetária dos processos econômicos esteve definida, de um lado, pelo direito à moradia de pessoas com renda e/ou crédito insuficientes; e, de outro, por práticas financeiras, algumas das quais possivelmente ilícitas, encadeadas – a partir de endividamentos garantidos por hipotecas – de modo a se traduzirem numa variedade de ativos financeiros postos em circulação e transacionados em diversos mercados.

Como descreveu Dave Mulcahey, em artigo publicado na revista In These Times,

“A maioria dos papéis de hipotecas hoje é vendida instantaneamente, e os compradores são os grandes bancos de investimento de Wall Street, que os reempacotam como títulos lastreados em hipotecas e vários produtos financeiros ‘estruturados’ (structured finance products) […]”.

A parte dos devedores que não tem renda suficiente gera as hipotecas chamadas subprime, ou seja, dívidas garantidas, mas com um nível relativamente baixo de segurança para os credores, interessados essencialmente na manutenção dos fluxos financeiros estáveis, dos quais obtêm lucro.

De acordo com os regulamentos aplicáveis, os títulos lançados na faixa subprime a rigor não poderiam ser comprados por certos tipos de investidores mais densamente regulados pelas autoridades. Tais investidores são os fundos de pensão, fundos mútuos, companhias de seguro e outros. Porém, com a maquiagem contratual que recebiam, especialmente na forma da chamada “obrigação de dívida colateralizada” (collateralized debt obligation – CDO), e dada a existência dos fundos hedge, não alcançados pela regulação, os papéis acabavam sendo amplamente comercializados.

Parte da explicação para o sucesso inicial dessa enegehnaria financeira está no fato de que várias empresas especializadas em “classificar” riscos – tais como a Moody`s e a Standard and Poors`s – passaram estranhamente a trabalhar em proximidade com as casas financeiras de Wall Street para “criar esses maravilhosos novos valores mobiliários”, conforme relata Mulcahey. E, em seguida, passavam a emitir os conceitos (“AA”, “BBB” etc.) mediante os quais classificavam os riscos envolvidos nos produtos de “finanças estruturadas” que elas mesmas ajudaram a criar.

Por causa da maneira como eram formalmente (juridicamente) “empacotados” os CDOs, os riscos de crédito que lhes eram inerentes tornavam-se pouco perceptíveis. Aparentemente, as agências de classificação de risco já mencionadas (Moody`s, Standard and Poors`s etc.) omitiram informações, deixando de reclassificar para baixo os papéis das finanças estruturadas que ajudaram a criar e que foram incoporando dívidas subprime. Segundo o serviço de notícias Bloomberg (citado por Mulcahey), tal reclassificação para baixo teria sido evitada porque “forçaria centenas de investidores a vender ativos, trazendo turbulências ao mercado de US$ 800 bilhões para papéis lastreados em hipotecas subprime e de US$ 1 trilhão em obrigações de dívida colateralizada”.

Mas isto só aconteceu assim também porque na outra ponta — a dos consumidores — houve muitas vítimas de práticas creditícias “predatórias”, para usar o termo empregado por Alexander Gourse, em artigo também publicado na revista In These Times. Segundo Gourse, os empéstimos predatórios realizados por bancos envolviam a representação distorcida das características dos empréstimos, tais como o ocultamento da mudança de uma taxa baixa de juros, para outra mais alta depois de um período inicial do contrato (ver mais análises no artigo da professora Patricia McCoy, da Universidade de Connecticut, publicado no periódico Harvard Journal on Legislation — disponível aqui). Os empréstimos “predatórios” atingem em especial comunidades de baixa renda ou minorias, marcadas por uma história de discriminação, pobreza e difícil acesso ao crédito. O prejuízo para os consumidores endividados desde 2005 no mercado imobiliário norte-americano deverá, segundo Gourse, montar a cerca de US$ 164 bilhões.

De qualquer modo, o processo resulta em lucros financeiros para os mais ágeis e bem informados. Foi o que a imprensa registrou:

“Como forma de evitar perdas e embolsar os lucros já obtidos, grandes investidores começaram a fugir dos ativos de maior de risco, como os de mercados emergentes, e procurar abrigo em aplicações consideradas mais seguras, como os títulos do Tesouro dos Estados Unidos.”

Como se vê, o que toma o aspecto de uma crise financeira, abstrata, impessoal, constituída de oscilações de índices de bolsas e mercados internacionalizados, tem um substrato humano, real, em que o gozo de direitos — no caso, o direito à moradia — de muitos é frustrado mediante a prática de contratos provavelmente ilícitos, para que muitos outros “realizem lucros”. Isto é ao menos um sinal de que crises financeiras talvez fossem menos agudas, ou ocorressem em proporções menores, se as regras que estruturam os negócios financeiros e a atividade de empresas de classificação de risco fossem mais ampla e eficazmente sujeitas à regulação que incorpore o genuíno interesse público.

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